O Brasil atingiu no último sábado (8) a marca de 100 mil mortos pela Covid-19. Apesar disso, o governo tem argumentado que o país tem “um dos menores índices de óbitos por milhão entre as grandes nações”. A afirmação não é verdadeira. A taxa do Brasil está entre as piores do mundo e, como as mortes continuam em ritmo alto, o Brasil está piorando nesse ranking.
Ainda assim, especialistas dizem que é preciso cuidado ao comparar a taxa de mortes por milhão de cada país. Epidemiologistas afirmam que, ao fazer simplesmente uma taxa por milhão de habitantes e comparar países, são deixadas de lado informações importantes como: o estágio da pandemia, o tamanho da população, a densidade demográfica, o perfil etário, o nível de testagem, entre outras.
Em números absolutos, o Brasil tem o segundo maior número de mortes do planeta, atrás apenas dos EUA. Já dados coletados pela universidade Johns Hopkins colocam o Brasil hoje na 11ª posição entre 167 países do mundo em taxa de mortos por milhão. Ou seja, o índice não é um dos menores entre as grandes nações. Em 20 de junho, quando o país registrou 50 mil mortos, ele figurava na 17ª colocação. Em 9 de maio, quando tinha 10 mil mortos, estava na 33ª posição.
Isso se explica, em parte, porque a doença já está sob controle em boa parte dos países da lista. Não é o caso do Brasil, cuja média móvel tem ficado em torno de mil mortes por dia, num patamar de estabilidade.
Dos países mais populosos do mundo, apenas os EUA aparecem atualmente na frente, em 10º. O Brasil também é superado por sete países da Europa (San Marino, Bélgica, Reino Unido, Andorra, Espanha, Itália e Suécia), além de Peru e Chile.
A distorção, porém, pode ser vista já na 1ª posição desse ranking: San Marino, com pouco mais de 30 mil habitantes, é o que tem mais mortes por milhão. Mas foram apenas 42 no total. O mesmo acontece com Andorra, que aparece em 4º. Há, no entanto, pouco mais de 75 mil habitantes no pequeno país europeu.
Brasil figura na 11ª posição do ranking; especialistas dizem que é preciso cuidado ao comparar taxas — Foto: Juliane Souza/G1
Brasil é um dos países com mais mortes por dia — Foto: Juliane Souza/G1
“Não tem como comparar número de mortes por milhão do Brasil com San Marino, por exemplo, que é o primeiro dessa lista bruta. San Marino está há muito mais tempo na pandemia e já está com os casos sob controle [não registra óbitos há dias]. Já o Brasil vem registrando cerca de mil mortes diárias tem semanas. Se olharmos somente esse número bruto, sem considerar o estágio da pandemia, entenderemos que é só uma questão de tempo para que o Brasil seja o país com maior número de mortes por milhão”, diz Domingos Alves, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto.
O epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP Paulo Lotufo diz que "morte por milhão" é “um termo canhestro para um coeficiente de mortalidade (costumeiramente por 100 mil habitantes) e que não se aplica em epidemias de uma forma geral”. “Como não se aplica numa explosão como a de Beirute, na tragédia de Brumadinho ou numa queda de avião”, afirma.
“Podemos usar para comparar somente locais onde já houve a epidemia, mas não para comparar local que ficou fora da pandemia (se fizermos isso, estamos inflando artificialmente o denominador)”, diz, referindo-se a cidades ainda não afetadas pela doença em um país continental como o Brasil.
“Ainda não estamos liderando o ranking de mortes por milhão neste momento, neste estágio em que estamos da pandemia, mas certamente vamos liderar se os números não baixarem. É só comparar os registros do Brasil semana a semana com países que lideram o ranking, e veremos que temos muito mais casos e mortes”, afirma o epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal.
Ou seja, comparações que consideram a população são importantes e são usadas para estudar a evolução e a distribuição da doença, mas fazer esse tipo de cálculo agora não é adequado, dizem os especialistas.
Estágio da pandemia
Um dos principais problemas na comparação é o estágio da pandemia em cada um dos países, afirmam os especialistas. Hallal explica que não se pode comparar a taxa de mortes de coronavírus por milhão quando se desconsidera os estágios da doença.
“Quando as autoridades brasileiras divulgam que o Brasil não é um dos primeiros em um ranking de mortes por milhão, elas estão, na verdade, esquecendo que a pandemia chegou aqui mais de um mês depois da Ásia e da Europa. Nossos casos são altíssimos para nosso estágio da pandemia”, afirma.
O estágio não pode ser desconsiderado nem mesmo dentro de um país. No caso do Brasil, estados de regiões como a Sudeste e a Nordeste foram afetados muito antes que os do Centro-Oeste, por exemplo.
“Houve temporalidade distinta no território nacional. É o mesmo que ver a tabela do Campeonato Brasileiro às 17h do domingo. Já houve jogo no sábado e durante a manhã, mas tem jogo no meio tempo. Terá ainda o jogo da noite. E o da segunda feira”, compara Lotufo.
A partir dos dados coletados pelo consórcio de veículos de imprensa, é possível ver que há estados onde a situação é bem mais grave no país. No Ceará, a taxa de mortes por milhão chega a 868. Ou seja, se o Ceará fosse um país, estaria atrás apenas de San Marino no ranking de países.
Há outros 15 estados com mortes por milhão piores que a média nacional (479), caso de Rio de Janeiro, Amazonas e Pernambuco, que figurariam em 3º lugar no mundo caso fossem países.
15 estados têm taxa de mortes por milhão maior que a média nacional — Foto: Juliane Souza/G1
Mortes por dia nos estados — Foto: Juliane Souza/G1
Nos EUA, não é diferente. O estado de Nova York, por exemplo, tem 1.669 mortes por milhão – o que o colocaria em primeiro disparado entre todos os países. Nova Jersey tem 1.780 mortes por milhão de habitantes.
Em compensação, há estados com menos de 100 mortes por milhão, caso do Maine, Oregon e Alaska.
Mortes por milhão de habitantes nos estados americanos — Foto: Juliane Souza/G1
Perfil etário da população
Epidemiologistas ressaltam que a idade também é um fator importante e que não pode ser desprezado.
“Comparações implicam em ajustamento pela pirâmide populacional A Itália tem muito mais idosos que o Brasil, por isso a taxa bruta pode ser maior, mas quando acertamos por idade, a diferença se reduz ou mesmo pode se inverter. No Brasil, Manaus é bem mais jovem que São Paulo, por isso as taxas são ainda maiores do que em SP”, diz Lotufo.
Hallal concorda: “Países europeus que aparecem nas primeiras posições desse ranking, como Itália e Bélgica, são nações com uma população envelhecida. É uma pirâmide etária muito diferente da do Brasil, um país com uma população muito mais jovem. Era de se esperar que o coronavírus fizesse muito mais vítimas em países com mais idosos. E mais uma vez ressalto: esses países estão há muito mais tempo na pandemia do que o Brasil”.
Maria Amelia Veras, epidemiologista da Faculdade de Medicina do Hospital Santa Casa de São Paulo, diz que, “em todas as comparações de uma doença que tem como um dos fatores de risco a idade, é preciso ter cuidado se as populações possuem a mesma estrutura etária. “Senão, é óbvio que um país com uma população mais velha terá mais óbitos ou casos do que os que possuem uma população mais jovem. Para isso, é necessário utilizar técnicas estatísticas que padronizam as populações”.
“Quando analisamos diferentes países e sabemos os fatores de risco para óbito, por exemplo, sempre devemos prestar atenção na distribuição desses fatores de risco nas populações.”
Densidade demográfica
O epidemiologista da UFPel ainda ressalta a questão das diferentes densidades demográficas de cada país. “O fato de o Brasil ter números altos nesta pandemia também está relacionado com teremos uma das maiores populações. Mas quando olhamos a densidade demográfica e consideramos as mortes por milhão, os números podem não parecer tão altos quanto em países minúsculos como a Bélgica, em que as mortes por milhão são maiores. Isso não quer dizer que eles estão ‘piores’ que a gente”, afirma Hallal.
Testes e subnotificação
Outro fator que pode interferir no cálculo é o nível de testagem. Em países em que há exames sendo feitos em massa e onde os resultados são divulgados com rapidez, a probabilidade é que os dados retratem de forma muito fiel a pandemia.
“Não conhecemos a totalidade de casos e óbitos no Brasil, já que não dispomos de testes em quantidade e qualidade adequados (por exemplo, temos pouco RT-PCR). Também sabemos que há cidades que não puderam testar grupos grandes de pessoas que foram a óbito”, diz Maria Amélia Veras.
“Segundo nossas estatísticas, os boletins do Ministério da Saúde refletem apenas 60% dos óbitos de coronavírus no país. Ou seja, 40% ficam subnotificados”, conclui Domingos Alves.
Para Antonio Silva Lima Neto, epidemiologista e pós-doutor pela Universidade de Harvard, "o indicador de mortes por milhão é utilizado como desfecho". "Ao final de um processo você calcula o número de mortes por milhão e aí você pode fazer um debate sobre o que aconteceu. Enfim, é uma taxa importante, mas normalmente utilizada como uma taxa de desfecho."
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