Por um embargo instituído pelo governo Vargas, em 1941, o futebol foi proibido para mulheres. Por 38 anos, elas jogaram de forma clandestina. Décadas depois, o machismo ainda está presente. Não se vê técnicas no comando de times masculinos, raras são as dirigentes. Para dar fim a um paradigma, o Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro (TJD-RJ) deu um passo para mudar essa visão. Em meados de julho, Renata Mansur Bacelar vestiu a habitual roupa social, calçou o salto alto e abriu um largo sorriso para ser aclamada a primeira mulher como presidente de um tribunal desportivo no país.
Aos 47 anos, mãe de dois filhos e professora universitária há 17 anos, a advogada foi candidata única para função, na qual permanecerá nos próximos dois anos.
— Nunca imaginei ocupar esse cargo ou que alguma mulher pudesse. Vivemos num meio ainda machista, apesar de ter sido um pouco superado — conta.
Formada pela UFRJ e mestranda em direito desportivo pela PUC-SP, Renata foi indicada por representantes de árbitros de futebol para a eleição. Filha do ex-presidente do TJD-RJ José Teixeira, começou na área desportiva em 1999, como auditora de comissão disciplinar de vôlei. Passou por tribunais de atletismo e Futebol 7 até ser convidada, em 2008, como a primeira mulher no TJD-RJ.
— Eu cheguei na primeira sessão e todos me encararam. Eles não falaram, mas eu via nos olhares: “O que essa mulher está fazendo aqui?” — lembra. — Ainda existe a ideia de que, para falar sobre direito desportivo, é preciso entender de regras de futebol. Há uma rejeição natural pelas mulheres. Precisamos desmistificar isso. No direito desportivo, você tem que entender do direito desportivo e de regras disciplinares. Não precisa saber o que é escanteio ou quando se marca um pênalti.
Propostas no tribunal
Depois de uma primeira impressão ruim, Renata se sentiu acolhida. Foram três anos como a única auditora mulher, de 2008 a 2011, até ser nomeada presidente de uma comissão. Nesse período conciliava o tempo entre o escritório próprio, dar aulas, cuidar dos filhos, estudar e ainda julgar.
Em 2018, foi chamada para assumir como uma das titulares do Pleno, a primeira mulher a atuar no cargo no país. Dois anos depois, aceitou o desafio e se candidatou à presidência.
— Minha vida mudou completamente. Precisaria de 48 horas para dar conta de tantas coisas. Mas o que importa é conseguir implementar minhas duas propostas: uma justiça desportiva única e cada modalidade ter um código próprio.
Na primeira, Renata se baseia em uma simples questão: o futebol tem estrutura e dinheiro, diferentemente das demais modalidades.
— Se uníssemos forças, com todas as entidades e clubes ajudando a subsidiar um tribunal único, já que ambos indicam os auditores ao TJD, a situação seria quase igualitária. Hoje, há julgamentos feitos em microssalas, até mesmo emprestadas, porque quase todas as modalidades não têm recursos para uma sede própria — afirma.
— Sobre um código desportivo próprio, o atual é baseado no futebol, mas cada modalidade deveria ser diferente. No futebol, o jogador recebe uma pena por dar um carrinho, mas você não tem isso no atletismo, vôlei ou natação.
Suas ideias são vistas com bons olhos, e a presidente do TJD-RJ já sente a disposição dos auditores em colaborar. Mudanças já aconteceram na sua gestão: há mulheres em todas as oito comissões, além de duas no pleno — ela e a auditora Joana Prado. O mesmo não ocorre no Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que ela critica :
—Fizeram uma comissão só de mulheres e acham emblemático. Mas elas só julgam o futebol feminino. É o mesmo que dizer que ‘não queremos vocês aqui no masculino’ — comenta.
Vaidosa e católica
Renata é vaidosa. As unhas são pintadas em cor nude, prefere maquiagem leve, usa um anel em cada mão e nunca tira o crucifixo, um pingente com a letra R e o símbolo do infinito do pescoço. Católica, vai quase todos os domingos à Igreja Imaculada Conceição, no Recreio. No escritório, uma cruz de pedrinhas e um Menino Jesus de Praga dividem espaço com corujas e bruxinhas.
Separada após 16 anos com o ex-marido, Renata Mansur está solteira. Fez promessa para que a filha passasse na universidade e se define como uma pessoa destemida e corajosa — características que a acompanham na vida profissional e necessárias para combater um meio ainda marcado pelo machismo.
— Escuto os homens dizerem que o futebol feminino é feio, chato e não é bacana de assistir. “Ah, são mulheres jogando”. Ainda há muito preconceito.
Renata sabe que, nos próximos dois anos, muito trabalho precisa ser feito no TJD-RJ, mas o pontapé inicial para a mudança já foi dado — e de salto agulha.
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