De um lado da Avenida do Aeroporto, em Fortaleza, centenas de pessoas partem de avião sabendo sua origem e seu destino. Do outro, outras que vivem em barracos improvisados podem até saber a origem, mas têm destino incerto: pelo menos 200 famílias encontram abrigo numa ocupação precária, já alvo de reintegração de posse.
Os primeiros moradores chegaram há quase um ano, no início de agosto de 2021. Não à toa, eles batizaram o local de “Terra Prometida - Vítimas da Covid-19”. Era uma forma de marcar um “momento histórico”, revela Mana Santos, a “Mana Liderança”, que atua hoje como gestora da comunidade.
A briga pela permanência começa já na contagem de afetados. A Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor) afirma ter realizado o cadastramento de 200 ocupantes do local, “dos quais 139 ficaram aptos para participar das ações da política habitacional de interesse social”. A ação ocorreu no dia 9 de junho deste ano, por decisão judicial e sob orientação de oficiais de Justiça
Já Mana defende a presença de 310 núcleos familiares - assim mesmo, em número fechado. Para isso, mostra um mapa da ocupação, com cada lote assinalado com o nome do “dono”. Na prática, também há placas com a informação diante de cada barraco.
O defensor público Lino Fonteles, supervisor do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), que acompanha o caso da Terra Prometida, pondera que o número é sim maior do que o informado pela Habitafor, pois o Nuham teria cadastrado mais de 50 famílias após a Secretaria deixar o local.
Naquela ocasião, Mana reclamou que muitos interessados da ocupação estariam em busca de trabalho ou em atendimentos de saúde. Os moradores sabem da importância de ter o nome registrado no papel para ter alguma perspectiva de futuro, já que a aparente calmaria vivenciada atualmente tem prazo para ser modificada.
Depois de alguns adiamentos, o Supremo Tribunal Federal ( STF) prorrogou a suspensão de ordens de reintegração de posse e desocupação até o dia 31 de outubro, em todo o Brasil. Justificada pela intensificação de casos de Covid-19, em junho, a decisão do ministro Luís Roberto Barroso impede despejos e desocupações em áreas urbanas e rurais.
No entanto, segundo o defensor Lino Fonteles, a medida não favorece a Terra Prometida porque só diz respeito a ocupações consolidadas antes da pandemia. O que sustenta a permanência das famílias no local, segundo ele, é uma intermediação da Defensoria utilizando instrumentos legais para atuar no amparo de grupos vulneráveis.
“Informamos ao juiz qual é a situação e pedimos a suspensão do despejo, ou seja, que só se cumpra a reintegração quando se encontrar uma realocação dessas famílias sem deixá-las ao relento”, explica Lino. “O poder público tem que encontrar uma solução e determinar para onde elas vão”.
Quem aguarda esse destino, por exemplo, é Genivânia Pinheiro, 32, atualmente desempregada e morando num barraco escuro com três filhas de 12, 6 e 4 anos, e Gael, ainda no primeiro mês de vida. Ela mesma ajudou a construir a “casa”, ainda grávida. “Sofri, mas deu certo”, conta ela, que não tem companheiro e conta com a ajuda de outras mulheres da comunidade.
A Habitafor não informou as alternativas dadas às famílias cadastradas. Ressalta que vem dialogando com os ocupantes da ocupação, mas esclarece que a área preenchida é privada e uma ação judicial está em curso. A Secretaria ainda destacou que vem apresentando e discutindo com o Governo Federal “novas alternativas para a política de habitação”.
A rede Atacadão, detentora do terreno, informou que “se solidariza com a situação das famílias e aguarda a conclusão do processo de reintegração do terreno”.
‘NÃO TINHA TETO, NÃO TINHA NADA’
Enquanto aguarda os trâmites jurídicos, a Terra Prometida se auto-organizou e abriu sete ruas. Algumas homenageiam pessoas da comunidade que morreram por causa da Covid-19. Outra relembra a história bíblica de José do Egito, vendido pelos irmãos e intérprete de sonhos na prisão. A mais recente ganhou o nome da cantora Marília Mendonça, vítima de acidente aéreo em novembro de 2021.
Por dia, a associação de moradores do local tenta garantir alimentação para cerca de 150 a 200 pessoas. Uma cozinha comunitária fica responsável pelo cozimento dos alimentos, quase todos doados ou comprados pelo pouco que cada um tem a oferecer. Um comércio da vizinhança cede ossos, muitas vezes a única “mistura” do dia.
Quando a comida está pronta, uma sirene ressoa entre todos os barracos sempre às 12h e às 18h30, anunciando almoço e janta. Uma das cozinheiras é Francisca Alzenir Alves, que até antes da pandemia trabalhava como auxiliar de costura e pagava R$350 de aluguel. Viúva, não tinha condições de manter a si e ao filho de 15 anos.
Hoje, os dois vivem praticamente do auxílio governamental, numa casa que a mulher construiu pedindo materiais de reciclagem a uma oficina próxima - exceto a lona que serve de teto, comprada por R$50. Alzenir sonha e reza por uma casa de alvenaria, ali perto mesmo, “porque conhece todo mundo e ninguém mexe com ninguém”.
É o mesmo desejo de Maria Auxiliadora, 45, mãe de quatro meninas - “todas estudam”, frisa. Ex-doméstica, ela também foi dispensada no início da pandemia e não teve como custear o aluguel de R$400. “Ficou muito difícil de manter a gente, então é melhor morar aqui do que pagar aluguel”, reconhece.
‘NINGUÉM PODIA ENTRAR NELA NÃO’
A insegurança jurídica não é exclusiva da Terra Prometida de Fortaleza. Em todo o país, há quase 570 mil pessoas ameaçadas de despejos ou remoções forçadas, sem direito a uma moradia adequada, conforme monitora a Campanha Despejo Zero (CDZ), uma articulação nacional de 175 entidades e movimentos sociais.
O direito à moradia está lá, no artigo 6º da Constituição, tão básico como o acesso à educação, saúde e segurança. Porém, falta vontade do poder público em transformar palavra em ação, como pensa Valéria Pinheiro, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab/UFC) e do Observatório das Remoções.
VALÉRIA PINHEIRO
Embora não haja um censo das ocupações, Valéria destaca que a maioria dessas famílias é chefiada por mulheres; formada por negros e negras; vive sem trabalho formal; e tende a já ter sido removida anteriormente, “numa vida muito instável”. “Nesses locais, elas criam relações de solidariedade, se ajudam, dividem tarefas, dividem o peso dessa vida de faltas”.
Como a moradia é uma porta de entrada para outros direitos básicos, a pesquisadora teme que crianças fiquem alheias à vida escolar e idosos não tenham acesso ao sistema de saúde. Segundo ela, há instrumentos jurídicos e urbanísticos capazes de ampliar o acesso à habitação, como a cobrança de imposto progressivo para terrenos vazios e a utilização de prédios ociosos.
O defensor público Lino Fonteles concorda. “Não há moradias disponíveis, não tem mais nenhuma moradia pronta em Fortaleza. A solução precisa ser outra, ou permuta para essas pessoas ficarem onde estão, ou locação social. Mas programa habitacional em curso não há”, assegura.
Jacimar Lima de Sousa, 45, sabe disso. Viúva, aportou na Terra Prometida ao voltar de Brasília ao Ceará para cuidar de uma irmã. Recebendo apenas a pensão do marido, decidiu sair do aluguel: “como vou comprar uma casa que o salário mal dá pra viver?”. Usou as poucas economias para montar um barraco, e dele se orgulha. “É aqui que eu vou fazer minha fazenda”, sonha.
COMO AJUDAR
A comunidade Terra Prometida recebe doações de alimentos para manter as refeições. Interessados podem procurar Mana Liderança no telefone (85) 99149-1455.
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